Possivelmente a primeira construção de pedra e cal da cidade, é o único do género em toda a África Austral. Nos anais da História consta que nela se faziam os enterros dos Europeus até 1838 altura em que foi inaugurado o cemitério da cidade.
Foi fundada em meados do século XVII e está classificado como Monumento Histórico Nacional.
MEMÓRIA JUSTIFICATIVA DA SUA CLASSIFICAÇÃO COMO MONUMENTO DE INTERESSE ARTISTICO E HISTÓRICO
A APRESENTAR À COMISSÃO DOS MONUMENTOS NACIONAIS ANGOLA
1947
IGREJA DE NOSSA SENHORA DO PÓPULODA CIDADE DE S. FILIPE DE BENGUELA
Na cidade tricentenária de S. Filipe de Benguela, foi a Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, o único templo que assistiu à impiedade dos tempos e ao abandono dos fiéis. Outros que aqui se ergueram ou ruíram sob a precoce decrepitude dos materiais precários ou foram desmantelados pelo alvião de homens insensíveis aos arroubos espirituais da fé e às emoções estéticas da arquitectura.
Cento trinta e um anos após a fundação da cidade foi concluída a fábrica deste belo templo, tendo sido, presumivelmente, a primeira construção de pedra e cal que aqui se edificou. O sistema de construção até então em uso, e que ainda prevaleceu na grande maioria dos casos, até há trinta e cinco anos, era o adobe.
Desconhece –se a data em que teve início a obra e ignora-se igualmente quem delineou o seu plano.
O que melhor se conhece da sua história é o que reza a lapide do tímpano da porta principal, mas que apenas nos refere o nome de quem a ergueu e a data da sua função.
Diz essa inscrição textualmente o seguinte:
"O CAPITAM DE INFANTARIA ROQVE VIEIRA DE LIMA QVE COM FERVOR & ZELO FEZ ESTA OBRA TÃO PIA PEDE HUM PADRE NOSSO & AVE MARIA BENEFVNDATA EST DOMVS DEI PRIMO DIE NOVEMBRIS
ANNO
1748"
Nos dois séculos da sua existência, que se completam no próximo ano, foi o edifício reparado diversas vezes e foram-lhe feitos alguns acréscimos e introduzidas modificações,
Em 1869 foi colocado um relógio numa das torres e em 1895 foi aplicada o forro nos tetos, segundo noticias registadas no livro “A FAMOSA E HISTORICA BENGUELA”, de Ralph Delgado.
Destacando-se da fábrica geral e primitiva da igreja, existem alguns corpos anexos, com dependências de serviço ou subsidiárias do culto, de construção posterior à fundação e cujas épocas de execução se desconhecem, com a exceção do último, que foi edificado há poucos anos e que, felizmente, não teve conclusão. A actual sacristia, anexa à fachada lateral Norte, deve ser uma das ampliações do edifício, ainda que assim se possa julgar apenas pela sua aparência, desarticulada da estrutura geral e do estilo característico da construção principal, a menos que tenha sofrido mutilações que lhe tenham transformado a feição primitiva e nos possa induzir em erro.
Encostado à fachada lateral sul, destaca-se um corpo de construção, arquitetonicamente desligado do núcleo central do edifício pela descontinuidade desligado do núcleo central do edifício pela descontinuidade de molduras e mais elementos caracterizadores do estilo e pela conformação da sua cobertura. Este corpo engloba uma capela e duas salas sobrepostas, constituindo, como a sua configuração deve ter sido efetuada em duas fases e épocas distintas, a avaliar por diferenças de perfil que se observam no beirado e por outro indício.
Um outro anexo se encontra ainda, encostado à fachada posterior, de linhas chamadas modernistas, cuja construção teve início em 1939 e se encontra paralisada e é de desejar nunca seja levado a termo, por constituir, uma afrontosa irreverência para com o respeito devido a uma obra arquitetónica de vincado estilo barroco setecentista, a mais bela e característica dessa época que existe na Colónia. Para tal, conspurcação, não poderá haver melhor remate do que aquele que o camartelo demolidor lançou sobre venerandas relíquias do passado que enobreciam, outrora a terra de Angola.
II
A composição da planta da igreja de Nossa Senhora do Pópulo é muito singela, como a generalidade dos pequenos templos coevos das províncias portuguesas. É constituída por uma única nave, pela capela – mor e por duas capelas laterais, nos topos do cruzeiro.
Nos ângulos da fachada principal com as fechadas laterais, elevam-se duas torres sineiras; na do ângulo Noroeste fica a baptistério ao nível da neve e no espaço compreendido entre ambas está situado o côro, a meia altura do edifício.
Ao longo da fachada lateral Norte e correspondendo à nave, existe uma arca sobre a qual se estende uma galeria com pilares, que dá acesso ao côro, ao púlpito e aos campanários das torres. Na mesma fachada e no espaço correspondente ao corpo da capela-mor existe um anexo constituído por dois de sacristia.
Na fachada lateral Sul, encostado à capela – mor, há um corpo de construção compreendendo duas salas sobrepostas, utilizadas para catequese e reuniões, e a capela lateral.
No corpo da capela – mor, por trás do altar, há dois compartimentos sobrepostos; no superior está armado o trono; o inferior serve atualmente de arrecadação, sendo de presumir que fosse outrora a sacristia, antes de ser construído o anexo da fachada norte que agora se utiliza para tal fim.
Encostado à fachada posterior ergue-se desde há poucos anos a anacrónica construção a que já se fez referência e que urge ser demolida.
O interior da igreja é muito sóbrio. As paredes da nave são lisas e estucadas, apresentando como único relevo, na nascença do teto, uma forte cornija de alvenaria estucada, que se prolonga até ao arco triunfal. Este e os dois das capelas do cruzeiro são de volta perfeita e muito singelos na sua ornamentação.
O pavimento da nave é assoalhado, provavelmente desde os princípios do século passado, depois que deixaram de ser feito enterramentos na igreja. O tecto é forrado a madeira, desde 1895, como já se referiu, ignorando-se como se apresentava antes dessa data. O estuque das paredes está pintado e dividido com falsas justas imitando silhares de mármore.
As paredes da capela – mor tem aspeto semelhante ás da nave. O pavimento de cruzeiro e da capela – mor é ladrilhado e o tecto desta é estucado com ornatos em relevo.
As paredes das dependências anexas à igreja são simplesmente rebocadas e caiadas a branco; os pavimentos são ladrilhados nos compartimentos do andar térreo e soalhados nos do andar superior, servindo estes de tecto das dependências de baixo. O tecto da sacristia é forrado de grossaria caiada; os tectos dos compartimentos do primeiro andar não são forrados.
No exterior, o acabamento das paredes é ainda mais pobre do que no interior, porquanto todos os paramentos e superfícies em relevo são simplesmente rebocados e caiados a branco. Apenas a portada principal é guarnecida de cantaria, no conjunto formado pelas numbreiras, dintel e frontão; os ornatos que sobrepujam a cornija deste, já são, porém, de argamassa e caiados.
A composição arquitectónica das fachadas carece de unidade, no que não terão sido estranhos em parte, as transformações e a créscimos do contrapor a esta deficiência, haveria o recurso dum consciencioso restauro ou, mais apropriadamente, duma integração das fachadas no estilo característico da época da fundação do edifício, e que assaz se patenteia na frontaria e nas torres.
É nesta parte da construção que se consubstancia o elevado valor intrínseco da obra, que se revela no cunho português do seu estilo barroco e a que nem as imperfeições da forma, nem a frustes de técnica, nem a pobreza das matérias conseguem roubar expressividade e emoção.
A arquitectura do frontispício é de proporções agradáveis e sóbria na sua composição.
O paramento que entesta a nave é ladeado por duas torres sineiras, no seu alinhamento e apenas realçadas pelas pilastras que definem e fortalecem os cunhas. Ao centro abre-se a portada, de cantaria sobriamente lavrada e de belas proporções, que é acrescida, acima do frontão, de ornatos em relevo enriquecendo a sua composição. Ladeando este remate existem duas janelas que iluminam o côro, e sobre elas desenvolve-se um cornijamento que contorna as torres.
A frontaria é sobrepujada por um elegante frontão, de curvas policêntricas com volutas nas nascenças e arrematada por uma cornija bipartida. Na base do frontão abre-se um óculo polilóbulo, guarnecido por um vitral.
Nas torres que se erguem nos ângulos, há a notar, abaixo de cornija geral, nichos de abóboda concoidal e, acima desta um ático oferecendo a particularidade de ter as pilastras divididas por alhetas, ao passo que inferiormente se apresentam lisas.
Sobre o ático elevam-se os campanários, quadrangulares, cobertos por cúpulas com lanternis.
Nas fachadas laterais, a torre tem composição idêntica à da face anterior, mas apresentam a singularidade de ter maior largura na parte abaixo da cornija do que na que lhe fica acima. E como o alargamento se fez apenas para um dos lados, resultou numa assimetria e no desencontro do eixo dos vãos superiores em ralação, aos inferiores. Na face da fachada principal, as torres oferecem ainda uma outra anomalia arquitectónica, visto as pilastras de baixo não corresponderem exactamente às de cima e terem larguras desiguais, sendo a do cunhal exterior mais estreita. Dá-se igualmente uma falta de simetria e o eixo dos nichos não está na prumada do eixo dos vãos superiores.
A causa destes defeitos de arquitectura não é bastante clara, ignorando-se se ela resultou de qualquer êrro de execução ou da má concepção do plano ou ainda da inexistência de qualquer traçado, deste, podendo a obra ter sido realizada por improviso ou por um simples delineamento impreciso e sem escala.
Das outras fachadas, a que oferece maior interesse arquitectura é a lateral Norte, na parte correspondente à nave, que apresenta uma arcada de quatro arcos sobre a qual existe uma galeria com fortes mainéis suportado a cobertura e com cinco intercolúnios guarnecidos de reixas de madeira.
Este conjunto, que se quadra bem com a arquitectura do frontispício e das torres, é uma viva expressão do sentimento português que caracteriza muitas construções ultramarinas e de algumas regiões metropolitanas, peculiarmente das províncias do sul.
É um misto de sabor conventual, popular e tropical, a que as rixas de madeira e o beirado de telhas curvas dão um certo canto mourisco.
A secura que, porém, ora apresentam alguns pormenores, faz suspeitar mutilações ou reparações mal orientadas.
Nada mais de notável se observa nesta fachada, e outra menção não há fazer sobre ela senão o quanto tem de detestável o abarracado e incaracterístico anexo coberto a zinco que serve de sacristia, para qual forma com o belo corpo da arcada e galeria, dum lado, e com a espúria construção encostada a fachada posterior, doutro lado, o mais anacrónico e condenável contraste.
Da fachada posterior nada há a salientar e nada mais se lobriga do que as empenas do edifício sobre o mostrengo arquitectónico que há poucos anos insensatamente ali se ergueu e que é, pelas suas linhas, a antítese do gracioso estilo barroco da igreja.
A fachada lateral Sul é duma acentuada pobreza arquitectural, e o próprio corpo adjacente a capela – mor, posto que mais aproximado das linhas dominantes do edifício, apresenta-se desconexo do conjunto e sem interesse particular.
III
Os ornamentos interiores são poucos e pouco suntuosos, na sua generalidade, e de época diversas.
A ornamentação do altar – mor é moldada em estuque, desenvolvendo-se em volta do arco do trono, que é sobrepujado por um frontão de graciosas linhas curvas com diversos motivos decorativos, e ladeado por dois pares de colunas com entablamento da ordem coríntia.
O tecto da capela – mor, em forma de masseira, é também estucado com florões no centro.
O altar lateral do Evangelho no cruzeiro. tem uma composição semelhante à do altar – mor, com ligeiras diferenças de forma, mas é mais singelo e da ordem jónica; á construído também em estuque moldado.
Maugrado a pobreza do material com que são construídos, mais acentuada ainda pela crueza da sua cor natural, estes altares têm um aspecto gracil e harmonioso, que contraste com a secura do teto e paredes lisas da nave e com a pesada cimalha que as remata.
A ornamentação destes altares deve ser um tanto recente, certamente posterior a 1877/80, visto que o Governador de Benguela Alfredo Augusto Ferreira de Melo, que governou nesse triénio fez da igreja esta referência: “é edifício bem construído, despido completamente de ornatos, as quias são indispensáveis para alimentar a devoção”.
A decoração da capela lateral da Epistola é muito pobre e destituída de interesse, constando apenas dum fundo de madeira com arcos e apainelados, pintado a duas cores.
A obra ornamental mais valiosa que a igreja encerra é, sem dúvida, o belo púlpito com docel, em madeira esculpida, de gracioso recorte e relevos de rococó, e que não terá certamente outra comparável em Angola.
De apreciável interesse artístico, existem também a teia abalaustrada que separa a nave do cruzeiro, o anteparo do côro e o gradeamento do baptistério, de elegantes colunelos torneados, em madeira escura envernizada, como a do pulpito.
Não se conhecem noticias escritas da proveniência e da data em que todas estas peças ornamentais de madeira foram aplicadas no edifício, mas afirma a tradição que são oriundas da cidade da Baia, no Brasil - o que é de crer, dado o facto de ter existido outrora grande contacto entre esta colónia e a que lhe ficava fronteira na outra margem Atlântico, e que só muito depois da Independência desta última diminuiu de intensidade.
Uma outra obra decorativa notável é o lavabo da sacristia, de mármore lavrado e polido, em dois tons, com ornatos marinhos emoldurados em robustas formas arquitectónicas, num conjunto escultural tipicamente barroco.
Num outro género artístico, há a salientar um pequeno e delicado vitral, de primoroso colorido, assinada por Ricardo Leone.
Como adornos interiores podem assinalar-se também quatro telas de algum mérito e umas poucas imagens e móveis do apreço.
A cumular estas obras de arte, encerra ainda a igreja algumas peças de preciosa prataria. dentro os quais avulta um magnifico frontal do altar finamente cinzelado.
IV
Edifício a meio do século XVIII, a Igreja de Nossa senhora do Pópulo de Benguela, reflete na sua traça o espirito e o ambiente estético da sua época, que nesse momento histórico marcava a nação portuguesa um dos pontos culminantes da arte, sincrónico do frémito de esplendor e euforia que ao reinado de D. João V trouxeram as riquezas ultramarinas.
É nesta época que floresce com novo brilho e com étnica personalidade a nossa inspiração plástica. É a esta centuria, com a época manuelinho, que o ilustre historiógrafo de arte espanhol Márquez de Lozoya considera a idade dourada da arquitectura portuguesa.
Uma desusada exaltação artística animou nesse século todo o país, e por todas as terras metropolitanas, de norte a sul, fervilhou uma ancia de construção que se traduziu numa séie incontável de novos tempos, palácios e vivendas, sumptuosos uns, mais singelos outros, e quais todos eivados dum nacional inconfundível, que fez tradição e a que não ficaram estranhos o caprichoso da forma, a graciosidade dos ornatos e o colorido típico das fachadas, numa conjunção tão grata e amoldada ao temperamento estético português. O fruto dessa febril actividade de construtiva patenteia-se tão prolixamente que proporcionou ao Marques de Lozoya esta referência: “Sem exagero podemos dizer que no seu aspeto monumental Portugal inteiro é obra do século XVIII. Com algum vestígio de época anteriores”.
Um movimento construtivo de tão vastas proporções, ainda que mobilizando um incalculável número de operários, obrigou a adotar sistema de construção mais expeditos e materiais mais acessíveis do que aqueles que até então era de uso empregar em edificações de certa categoria e suntuosidade. Os palácios, templos e outros monumentos arquitectónicos em cuja fábrica até então se costumava usar a encilharia, passam a ser construídos com materiais de mais fácil e rápido preparo, aplicando-se geralmente a cantaria apenas nos relevos e elementos decorativos das fachada. Em grande número de casos a transformação foi ainda mais radical, dispensando totalmente a pedra trabalhada e adotando-se igualmente a alvenaria para os lavores das obras, que depois seriam realçados com coloração adequado.
Embora mais pobres na sua estrutura, estas obras, em regra perdem em valor artístico. E até a própria substituição, parcial ou total, dos materiais deve ter contribuído para a caracterização ou diferenciação da arquitectura nacional no período barroco, reconhecida pelos críticos de Arte.
Essa feição especial, mais de inspiração e índole popular, revelou-se principalmente na Província e no Ultramar, onde a pobreza de recursos ou a falta de canteiros e de boa pedra para lavrar forçaram ao emprego da alvenaria.
Foi a seiva opulenta dos tesouros de alem – mar, da India e, então, mias intensamente do Brasil, que alimentou aquele aureo período de grandeza e de engrandecimento nacional, produzindo uma das mais belas florações da nossa cultura, expressa plasticamente. E, desse manancial que trouxe a força vivificante material, veio também grande parte da inspiração, sob um sentimento de sumptuosidade e exaltada fantasia ou sob uma profusão de motivos e formas exóticas, que já duas centúrias antes, noutra época igualmente esplendorosa, haviam inspirado o estilo manuelino – esse sortilégio plástico que o consagrado historiador e critico de arte Eugenio d’Ors considera “ a génese do barroco histórico que se difunde por toda a Europa no século XVII “ e que os portugueses e espanhóis levaram aos outros continentes.
Por meio desta transplantação às outras partes do mundo, os povos ibéricos devolvem à procedência muitas das formas estranhas que haviam importado, agora mais ou menos estilizados à sua sensibilidade, ao mesmo tempo que transferem para essas regiões ultramarinas muitos dos motivos plásticos originários da Península e dos outros países europeus, que por sua vez vão ser adaptados ao temperamento particular dos outros povos e exercer maior ou menor influência sobre a sua arte.
Opera-se, assim, uma osmose da cultura, uma interpenetração estética que pela primeira vez na história da civilização toma foros de verdadeiramente universalista. É a primeira vez que um estilo artístico se difunde pelas sete partidas do mundo, galgando continentes e oceanos, e essa glória disfrutam-na Portugal e Espanha, que o disseminam pela africa, pelas Américas, pela Ásia e pela Insulíndia, principalmente na sua feição caracteristicamente hispânica, de inspiração transoceânica e de sentido eclético e universal.
Se o corrente barroquista puramente europeia sofre na Península Ibérica uma forte fermentação sob a acção da levedura estética autóctone, é talvez sob influencia da arte ameríndia e asiática que ela se desintegra dos moldes originários e toma personalidade próprias. E este estilo assim metamorfoseada, enraizando-se nas terras de além-mar, cresta-se ao calor do ambiente tropical, tomando sabor particular e encantos locais multíplices. Esta floração ultramarina do barroco ibérico é designada na sua generalidade, por estilo colonial, embora acentuadas diferenças for mais de país para exijam uma certa particularização.
Ainda que tendo de enfrentar a poderosa irradiação da arte espanhola e a acção de arquitectos estrangeiros dentro das suas próprias fronteiras, Portugal conseguiu manter no século XVIII uma posição de destaque dentro do movimento artístico peninsular e dar as suas produções um cunho próprio, de vigorosa personalidade, que o eminente critico de arte Dr. Reinaldo dos Santos considera “uma das formas mais originais em que se encarnou o barroquismo europeu” e cuja riqueza de formas provocou a admiração do historiógrafo da arte portuguesa conde de Rackaynoki.
O nosso barroco setecentista, que é conhecido geralmente por estilo D. João V é uma das melhores expressões plásticas da sensibilidade, da idiosíncrasia do povo português. Ele encarreirou novamente a nossa arte no sentimento estético nacional e no espírito da nossa tradição, que anteriormente se havia evidenciado a fase românica e na época manuelina.
Não se circunscreve à terra metropolitana à prodigiosa actividade construtiva do século XVIII. O seu reflexo projeta-se aos territórios ultramarinos, com mais ou menos intensidade e brilho, enriquecendo-os de valores materiais e de valiosas criações da arte, numa vibração sincrónica de esforços e de ideais que raras vezes atingiu tão elevado diapasão e produziu tão frutuosos resultados. Em todos os nossos domínios de então se ergueram inúmeras obras de arquitetura civil, religiosa e militar, muito especialmente no Brasil, onde se concentravam as nossas atenções e cujas riquezas naturais propiciaram a realização dum notabilíssimo progresso urbano.
Como sucedia na Metrópole, a mão-de-obra era escassa para acção de tamanho vulto e não havia lugar, a maioria das vezes, para a selecção dos materiais de construção, que não raro tinham de ser importados da Mãe-Pátria. Tão prementes circunstâncias, em concorrência com a utilização de artífices indígenas e de construtores autodidatas, emprestaram a essas produções arquitectónicas uma fisionomia especial, caraterizada, geralmente por uma singeleza de forma, por uma técnica fruste e por vigorosos elementos estruturais, de aparência um tanto provinciana e popular. E o estilo barroco que se expandiu por essas terras de estranhas gentes levado pelos colonizadores, sofreu por vezes os efeitos duma amalganização de temperamentos e civilizações diversas, frutificando aqui e além sem perder o forte vínculo pátrio impregnado dum sabor exótico e bárbaro, sob o influxo de novas sugestões ou de sentimentos atuando em maior liberdade de cânones e de inspiração.
A essa feição ultramarina da nossa arquitectura, que revela um constante de sensibilidade através do tempo e do espaço, em épocas e lugares distantes, pode com propriedade chamar-se estilo colonial, não pela situação geográfica, mas pelo espírito e expressão evocativa das terras de além-mar, manifestando-se em múltiplos aspetos intrínsecos e em variadas exteriorizações formais. Essa designação não está ainda generalizada, a não ser num sentido impróprio, talvez por se tratar duma ideia mal definida e duma cousa ainda por estudar. Mas, quer este especto da arte colonial, quer toda a outra obra arquitectural que os portugueses realmente fora do território metropolitano, são dum preciosíssimo valor e duma importância ainda mal apreendida para a valorização do património espiritual da Nação, para o prestígio da nossa cultura e até, possivelmente, para o surto da evolução da nossa arte no futuro.
Uma cousa é obvia desde já e constitui um postulado indiscutível: ainda não se fez a história integral da arte portuguesa nem se poderá fazer sem passar pelas colónias, pelo Brasil e por outros territórios que outrora estiveram sob o nosso domínio ou onde exercemos a nossa influência. Quanto mais não soja que com finalidade, será uma obra nacional das nobilitantes conservar os venerandos momentos do passado, para que algum dia possam entrar no activo do nosso património cultural.
V
Considerando mais particularizada mente o caso de Angola, verifica-se do mesmo modo um fértil movimento construtivo no século XVIII, em uníssono com labor desenvolvido na outra parcelas do Império Português, ainda que mais modesto de obras e de proporções, o que não será de estranhar atendendo à função subalterna que então desempenhava esta colónia. Nessa época ainda eram muito poucos os de população europeia em Angola e, dentre esses, só um pequeno número tinha a importância e a segurança bastantes para neles se fazer sentir qualquer preocupação de ordem estética. As vicissitudes das lutas contra o gentio e a decadência ou o abandono de povoações terão talvez feito desaparecer muitos vestígios dessa era. Abstraindo de um ou outro presidio do sertão, onde a vida era dura e insegura demais para permitir a realização de obras além das defensivas, a acção colonizadora circunscrevia-se a alguns pontos litorâneos ou fluviais.
Foi aí, nessas vilas e cidades, que a actividade construtiva se desenvolveu, em fábricas sólidas e perduráveis, meramente utilitárias e defensivas, de caracter espiritual e de intenções artísticas, outras.
É principalmente em Luanda que se encontra o maior núcleo de construções daquela época, em especial edifícios residências, entre eles muitas casas de sobrado. Alguns tem aspeto apalaçado e revestem-se de certa importância, mais pelas proporções do que pela riqueza arquitectural ou valor dos materiais utilizados. Maugrado a singeleza das linhas arquitectónicas e motivos ornamentais, tem uma certa aparência nobre e citadina, com suas fachadas simétricas, seus balcões com grades de ferro forjado, suas cimalhas molduradas e beirados salientes. Neles estão bem patentes o cunho português. As características barrocas e a feição tipicamente colonial, principalmente nas varandas das tardes, nos telhados e noutros pormenores.
Também nos arredores de Luanda se construíram diversos edifícios na mesma identidade de estilo, havendo que lamentar a ruína e o desaparecimento de muitos deles.
Nas vilas do Dondo e Novo Redondo, que no seu conjunto conservam ainda as características setecentistas, notam-se, por entre singelas moradias térreas, algumas casas de sobrado de imponência e feição semelhante às de Luanda.
Benguela é uma das povoações antigas mais de Angola. A sua função política através dos tempos, as suas actividades económicas e a sua basilar na penetração e ocupação das terras ao sul do Quanza, deram-lhe uma aura de grandeza e exornaram-na de tradições históricas que só a capital da Colónia pode suplantar. No entanto, em realizações urbanas, em obras de arquitectura, não andou à altura do seu prestígio de segunda cidade de Angola, não podendo sequer apresentar as típicas casas de sobrado que se vem em povoações de menor importância e que testemunham o desafogo que o seu comércio usufruiu nos séculos passados. As próprias construção térreas não oferecem o menor interesse arquitectónico nem revelam, geralmente, qualquer preocupação de ordem estética. Dir-se-ia que Benguela viveu sempre a margem dos anseios espirituais e do frémito de realização que animaram o povo português, tanto no século XVIII como em qualquer outro da própria Colónia. Talvez que os poderosos factores de insalubridade locais com as consequentes intenções de mudança da cidade tenham desencorajado a execução de grandes obras ou a construção de simples edifícios com materiais duráveis e com preocupações de bom gosto. Talvez que alguns que porventura hajam existido outrora tenham caído sob a ruína do tempo ou de outras fatalidades, como sucedeu com a Igreja de Santo António, ou tenham sido desmantelados pelo homem, como aconteceu com a velha fortaleza e o antigo hospital.
VI
Quis a sorte, felizmente que ao menos um exemplar escapa-se da voragem da destruição e da esterilidade artística ambiente, ainda que não depurado dos enxertos e irreverencias com que o conspurcaram. E é surpreendente e paradoxal que justamente na cidade mais pobre de arquitectura e na povoação de Angola onde menos se fez sentir o surto artístico do século XVIII se encontre o mais belo espécime arquitectural desta época em toda a Colónia: a Igreja de Nossa Senhora do Pópulo.
O gracioso templo da cidade de Benguela é o exemplar que assinala a repercussão, no Sul da Colónia, da actividade construtiva que galvanizou todo o Império no decurso daquela centoria; é o espécime que melhor testemunha a expansão de arte barroca nacional em terras angolanas; é, enfim, o mais típico modelo da arquitectura colonial nesta região do continente africano.
A despeito das suas irregularidades e da sua humilde contextura de alvenaria caiada, a sua contemplação desperta um sentimento de beleza e evoca o espírito criador e generoso de outras eras, que soube transmutar os materiais que a natureza sempre pôs á disposição do homem, em obras de arte e realizações de sentido elevado e perdurável. A modéstia das proporções não diminuiu o encanto das formas específicas, e a própria técnica incipiente e fruste do seu acabamento parece imprimir-lhe um valor emotivo especial.
Tanto pela composição geral da frontaria, como pelos seus motivos ornamenteis, está bem definido o estilo barroco das suas linhas arquitectónicas, revelando-se mais pronunciadamente nas torresã de cúpulas campanuliformes, na silhueta curvilínea do elegante frontão, nos relevos decorativos do portal na forma delicada dos nichos. Mas o seu barroquismo tem a valorizá-lo um característico cunho nacional, uma vinculada personalidade étnica, que se filia principalmente nas obras coetâneas das províncias meridionais de Portugal. Mas há também um sentimento particular a irradiar da sua arquitectura, uma expressão singular que dimana das obras de criadas nas terras ultramarinas e lhe dá um caracter próprio, mais fácil de apreender do que definir: o seu sabor colonial.
Rebento singelo duma fraternidade imperial, templo de Benguela tem noutros territórios de colonização portuguesa algumas criações similares no estilo, embora diferindo no conjunto da composição e na imponência das proporções. Há no Brasil e na India exemplares que nitidamente refletem uma mesma inspiração, com silhuetas idênticas e repetidos elementos de arquitectura. Há influências manifestas de uns para outros, mas cada qual tem a sua conformação própria, e a igreja de Benguela não deixa de ter também sua fisionomia diferenciada, a que até a singeleza e modéstia dão realce particular. Perante todas as obras setecentistas que ainda existem em Angola, a Igreja de Nossa Senhora do Pópulo é certamente a mais característica e a de maior interesse artístico. Se nas casas solarengas e velhos sobrados coevos de Luanda se encontram típicos exemplares da arquitectura civil, a sua grande sobriedade ornamental e simplicidade composição não lhes permitem competir com a graciosidade de linhas e o valor estético deste templo. E dos outros momentos religiosos da época que ainda restam na Colónia e que bem poucos são, depois que a maior parte desapareceu nenhum atinge o nível daqueles nem apresenta o caracter barroco, português e colonial, que o distingue. Mesmo entre todos os edifícios de idêntica finalidade que se tenham erguido em Angola, anterior ou posteriormente que se tenham erguido em Angola, anterior ou posteriormente a ele, não se encontrará um outro superior ou similar na beleza e qualidades intrínsecas da sua arquitectura.
VII
As obras de arte são um património material e espiritual da nação, um índice da sua cultura e da civilização na evolução dos tempos. E, quando essas superiores criações do espírito humano se encontram em terras por onde um povo se expandiu colonizando, revestem-se dum significado e duma importância muito especiais, por que são marcos evocativos do sem contributo para a marcha da Humanidade, que ao seu merecimento estético acrescentam um valor político e histórico que não poderá ser suficientemente exalçado.
Por ignorância ou por menosprezo desses valores culturais e interesses morais da Nação, abandonaram-se à ruína do tempo e a incúria ou destruição dos homens inúmeros monumentos arquitectónicos com recheio artístico inestimável.
Com o propósito de obstar a essas perdas irreparáveis, criaram-se em todos os países cultos instituições oficiais de proteção e conservação do património monumental e artístico, sendo desvanecedor verificar o que já se tem feito em Portugal nesse sentido, salvando-se e reintegrando-se muitos dos vetustos e gloriosos padrões doutras eras. Também é consolador observar o que no Brasil se está fazendo para defesa e conservação da sua valiosa arquitectura antiga, especialmente da época colonial.
Em boa hora se criou também em Angola a Comissão dos Monumentos Nacionais, para velar pelo legado da arte e da História nesta parcela do Império, onde há mais de quatro século vem sendo exercida a nossa missão civilizadora, enobrecidas desde os primórdios com um labor construtivo que se não tem circunscrito à satisfação das necessidades materiais.
Alguns venerandos monumentos do passado receberam já a classificação de bens patrimoniais da Nação, com a inerente proteção oficial, e até, em certos casos. beneficiaram de obras de restauro ou de conservação. Outros, porém, necessitam ainda de ser colocados ao abrigo das depredações e da ruína, protegidos e conservados pelo Estado, para que lhes não suceda o que a tantos outros já aconteceu, que já de todo desapareceram ou que jazem em escombros, corroídos pelo tempo ou desmantelados por mãos ignaras e irreverentes.
Entre todos os que assim se encontram desprotegidos, figura a Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, de Benguela; e dentre eles é, certamente, um dos mais dignos do amparo oficial, pelo seu categorizado valor artístico e por várias outras condições que a qualificam para ser considerada monumento nacional de Angola.
Dessas condições que a impõem à consideração e respeito públicos e à acção tutelar da Comissão dos Monumentos, umas apresentam apreciável importância local, por ser, em Benguela, essa Igreja:
O único templo que subsiste;
O único exemplar de arquitectura do século XVIII;
O único monumento arquitectónico notável;
O único edifício de valor histórico e artistico;
O templo mais antigo do Sul de Angola.
Outras condições revestem-se duma extraordinária importantância geral para a Colónia, por ser essa Igreja:
O seu mais notável espécime da arquitectura do século XVIII;
O seu mais apreciável modelo do barroquismo português;
A sua mais típica construção do estilo colonial;
O exemplar arquitectónico mais representativo duma época de incremento artístico e construtivo;
O mais belo edifício religioso de toda a Colónia;
O monumento de capital valor para a história da Arte em Angola
Outras condições, ainda, assumem uma importância de relevo e de interesse cultural para todo o Império, por essa Igreja constituir:
Um autêntico valor para o estudo da expansão da arte portuguesa no Ultramar;
Uma valiosa base para pesquisa das mútuas influências artísticas intercoloniais e metrópole;
Um testemunho do elevado ideal que tem orientado a colonização portuguesa;
Um padrão da acção evangelizadora e civilizadora de Portugal;
Um marco representativo da difusão da cultura europeia no Continente africano.
A concorrência das razões expostas, mais do que o simples acto moral da classificação da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo como monumento nacional, plenamente justificam um apoio mais efetivo e de resultados mais imediatos por parte do Governo, tendente a reparar injúrias do passado, remedir deficiências presentes e prevenir desacatos futuros. Isto é: a par do amparo moral, deveria ser-lhe dispensado o auxílio material de que carece para se libertar de enxertos espúrios e para poder arrostar os danos do tempo. Estes propósitos implicam a realização de obras de reparação e conservação, bem como de restauro ou, mais propriamente, de reintegração do edifício no seu estilo originário. Uma vez que se desconhece exactamente a sua configuração primitiva.
Em complemento das obras a efectuar no edifício, deveriam ser empreendidas outras para sua valorização, consistindo no arranjo e embelezamento do local segundo os moldes previstos no plano de Urbanização da Cidade. A materialização dessa ideia exige algumas expropriações e demolições de inestéticas e pouco valiosas construções existentes, que desfeiam e prejudicam o trânsito nessa zona urbana.
A remodelação projetada consiste na criação dum largo ajardinado, em torno da Igreja, e no condicionamento das construções próximas a diretrizes estéticas convergindo no sentido de se obter um conjunto arquitectural conexo e harmonioso. O regulamento respetivo estabelecia uma zona de proteção do monumento constituída pelo largo circundante e pela avenida que parte da sua frontaria, prescrevendo que todas as construções a fazer nessa zona tivessem afinidade com as linhas arquitectónicas daquele.
Estas prescrições foram já, parcialmente, desprezadas pelo Município, autorizando a edificação de prédios na Avenida em Linhas arquitectónicas incaracterísticas e desproporcionados em relação à largura desta, de mais a mais em série de modelo repetido. O facto impõe a necessidade de, com a classificação da Igreja como monumento nacional, ser considerada oficialmente como zona de proteção a área mais próxima, promulgando-se as disposições necessárias para que seja levado a efeito o largo projetado e para que na sua periferia não seja consentido erigir qualquer construção em desrespeito às superiores conveniências urbanas e nacionais, que reclamam, para o caso a aplicação de métodos urbanísticos coerentes e a defesa
estética duma obra de arte de notável valor histórico e cultural.
A firmou algures o eminente crítico de Arte Dr. Reinaldo dos Santos ser a “arquitectura, arte coletiva por excelência, a que melhor exprime as aspirações, a glória ou os sonhos das grandes épocas”. Assim é, realmente, e não só os traduz na época em que os materializou, como os evoca e Perpétua para todo o sempre, legando-nos ao mesmo tempo a lição viva do seu exemplo inspirador.
Os monumentos arquitectónicos são um património que não conhece limite de tempo e que nunca perde o valor o: não só enriquecem e glorificam o passado como o presente e o futuro, enobrecendo-se e revalorizando-se com a idade.
Essas obras de arte são verdadeiros índices do grau de civilização que não só interessam à Nação que os criou, como a toda a Humanidade, que nelas tem um legado do espírito, um facho perene cuja luz brilha iluminando-a em todos os tempos.
Como os monumentos veneráveis que nos restam em Angola são já tão poucos, cuidamos de os defender e conservar, como um dos valores mais nobres e sagrados que herdamos dos antepassados e que temos o dever de transmitir aos vindouros, a quem também pertencem, como a nós ou aos que nos precederam.
FERNANDO BATALHA - Arquiteto do Gabinete de Arquitetura e Urbanização do Governo da Província de Benguela. (ano de 1947)
Nota: Texto transcrito na integra do documento original Agradecimento Especial:Artur Alves por nos ter feito chegar o texto