Chefe Kitaba

Chefe Kitaba

Chefe Kitaba

Uma reportagem da jornalista Zuleide de Carvalho é destaque na Revista Vida desta semana.

Leitura recomendada!!!

Uma reportagem da jornalista Zuleide de Carvalho é destaque na Revista Vida desta semana.
Chefe Kitaba ou simplesmente Luis Miguel é o entrevistado.

 


É um jovem com talento inconfundível, generalizado e internacionalizado. Do arroz com ovos estrelados e salsichas fritas, primeiro prato que confeccionou, aos 13 anos, hoje domina a cozinha Portuguesa, Italiana, está familiarizado com a Russa e é mestre de gastronomia tradicional Angolana, o seu orgulho e assinatura, a sua marca e paixão. De regresso a Benguela, terra que adoptou como mãe, foi desafiado pela VIDA a demonstrar a sua arte numa cozinha apetrechada, preparando dois pratos do seu repertório criativo e, depois disso, contar-nos os passos que com firmeza deu para brilhar na Expo Milão 2015.


Luís Miguel é um Benguelense que nasceu e cresceu em Luanda, mas que, em adulto, bastou um fim-de- -semana para se deixar apaixonar pelo vermelho poder de sedução das rubras acácias, e assumir uma nova naturalidade. Empregado de Mesa, Supervisor de Loja, Instrutor de Natação. Hoje e para sempre, Chef de Cozinha. Proprietário do Snack-Bar “Paladares Express”, fez a rúbrica “Paladares Mil” no programa “Ventos e Sopros”, na Televisão Pública, onde aprendeu a explorar os produtos regionais. Nascido a 26 de Fevereiro de 1986, é filho de Moisés Miguel e Ana Gaspar.

Tem 17 irmãos. Há 6 anos numa relação, vive maritalmente com Zélia Pereira e é pai de Artur de Andrade Miguel, 8 anos, Alexandre Pereira Miguel, 4 aninhos e a Ágata Pereira Miguel está a caminho do 2º aniversário. Gosta bastante de fastfood e o seu hamburger favorito é incomum, o de carne de cavalo. A sobremesa é bem mais singela, o cremoso arroz doce. E a bebida ideal!? Cerveja bem gelada! Para comer, manga, para confeccionar, múcua.

Para degustar, beringela, para cozinhar, quiabos. Apreciador da natureza, a sua flor predilecta é a orquídea, já a praia é a Baía dos Elefantes, lugar literalmente paradisíaco, num dos recantos do oeste de Benguela. Cidade? Grécia, pela mitologia e história. Estudou em Luanda até ao 3º Ciclo depois, foi para Portugal, onde aprendeu teoria e prática sobre a arte que hoje domina. Trabalhou na “American Hot Dog” e no restaurante “Casa dos Kebabs”, em Bragança, onde num ápice transitou de auxiliar para o Chef de Cozinha, antes dos 18 anos. De regresso a Luanda estudou Artes Cénicas por 3 anos. A vida na capital não floriu, assim, voltou para Bragança e no mesmo restaurante teve “carta branca” para introduzir no menu comida tradicional Angolana. Dos seus pratos, os que melhor o definem enquanto Chef e mais orgulho lhe proporcionam, identidade e marca sobre a mesa, são a “Tarte de Kitaba”, o “Gelado de Múcua” e os “Katitos”.

Primeiro nasceu o Luís Miguel, depois, 15 anos atrasado, surgiu o Chef Luís. Até então, o que é que o fazia sorrir?

luis1Hum… Estranha esta pergunta. Eu gostava de brincar, desde que estivesse metido em algo dinâmico, estava contentíssimo, pois sempre fui um traquinas. (Risos).

De que é que mais gostava nos tempos de escola?

Dos tempos livres. (Risos) Aventurava-me a apanhar insectos e a dissecá-los. Conhecer o interior do organismo deles, fantástico. Era giro alimentar peixes nas lagoas, mas o que adorava era brincar na areia… E em casa apanhava tareia. (Risos).

Quem tinha por modelo enquanto crescia?

A minha mãe, foi uma “business woman”, dizia orgulhosa que não dependia de ninguém. Isso cultivou- me o espírito de liberdade.

Caracteriza-se como alguém influenciável?

Não. Só exerce poder sobre mim quem conquista o meu coração, e mesmo assim, é muito difícil.

Eis que é chegado o momento crucial em que as suas prioridades mudaram… Porque foi que a culinária passou a ser o centro do seu universo?

comidaCuriosidade e busca de diversão… A primeira vez em que cozinhei foi aos 13 anos. Estava em casa com a minha mana mais nova à hora do almoço e o pai estava prestes a chegar, quem iria cozinhar para ele? Fui ter com uma vizinha e perguntei- lhe como se faz arroz, ela explicou- me as etapas. Pus em prática e, perto do fim, chamei-a, para confirmar se estava pronto. Disse-me que tinha demasiado óleo mas que estava bom para começar. Entusiasmado, estrelei ovos e fritei salsichas, arrumei a mesa e servi.

O meu pai chegou e, desconfiado, perguntou quem havia cozinhado, por fim convenci-o de que tinha sido eu, e todos comemos. A partir daí quis descobrir mais do mundo saboroso e colorido. A minha mãe e avó ensinaram- me muitos segredos.

Aos 15 anos, por já ter bigode, arranjei o primeiro emprego na cozinha de uma roulotte. A paixão é tamanha que, já adulto, recebia encomendas para cozinhar em casa e fazia as entregas a pé, e se fossem grandes quantidades, deslocava-me recorrendo aos “Kupapatas”, que me perguntavam se não tinha vergonha de ser visto e reconhecido na rua, pois as pessoas viam-me na televisão a cozinhar no “Paladares Mil” e depois verem-me a usar os moto-táxis para me locomover… Para mim nunca foi motivo de vexame e ainda hoje os utilizo, pois não tenho carro porque não sei conduzir, nunca quis aprender. Antes de iniciar a minha carreira culinária aspirava ser Arquitecto e Cientista, hoje estou triplamente orgulhoso porque exerço as três, pois enquanto Chef estudo e crio as fórmulas para as minhas receitas e arquitecto-as no empratamento. (Gargalhadas sonantes) Afinal, sempre consegui o que queria, sonho realizado!

A que obstáculos teve de fazer face em prol da defesa e sustentabilidade desse inocente amor?

miguelAo contrário do que se poderia pensar, o meu pai nunca se opôs nem veio com o gasto discurso de que “Homens jogam futebol e mulheres cozinham”. Já os meus amigos faziam piadas à toda a hora, na ignorância, diziam “Tu cozinhas, hás-de ser gay!” (Sobrolho franzido) nunca deixei que isso me abalasse. Contudo, as minhas barreiras sempre foram pessoas que pertencem ao ramo da restauração. Tenho sido julgado muitas vezes, por ser bastante jovem e ter já uma repercussão internacional significativa, olham para mim e dizem que não tenho experiência suficiente, como se isso estivesse directamente ligado à idade, criticam a minha criatividade. Suponho que eventualmente se deixem convencer pela qualidade do meu trabalho pois, com o tempo, eles param de se pronunciar.

O que aconselho é que sigam o exemplo do mais velho João Gonçalves, o tio João, para mim um mestre, a grandiosa referência da cozinha Angolana. Ele está sempre pronto a ajudar, ensinando, fazendo sugestões, incentivando a continuar, a experimentar e a criar. Eu não quero ser o melhor Chef do país, isso traz muita responsabilidade e rouba demasiada privacidade. Quero apenas estar no top 5. Contrárias às barreiras, quero deixar patente o meu profundo agradecimento a três pessoas que muito me têm ajudado: Maria Alice Cabral, os Chefs Jõao Gonçalves e Rui Sá.

Onde residiu e habita a sua inspiração?

Desde que comecei a criar pratos, a minha fonte de inspiração tem sido o dia-a-dia, quando vou à praça e aprecio a variedade de verduras começo logo a imaginar diversas combinações, ao ouvir música inspiro-me, quando vou à praia comprar peixe fresquíssimo, rapidamente começo a sonhar, numa conversa agradável em que se mencione uma flor comestível, um legume, marisco ou qualquer ingrediente, num ápice essa pessoa perde a minha atenção porque o meu cérebro entra em actividade criativa, já muita gente se chateou comigo por isso, para disfarçar, quando me perguntam, “O que achas do que sugeri?” respondo: confio em ti, avança! E, na verdade, não faço a mais pequena ideia de que é que se está a falar. (Risos).

Ainda hoje presenciaste um momento criativo meu, pois antes de começar a confeccionar os dois pratos tomei um chá de caxinde e, automaticamente, pensei que temperar as gambas com o chá resultaria perfeitamente, e pus em prática, ou seja, ainda que residual, a minha receita original do “Esmagado de Kibeba com Gambas Grelhadas” já sofreu alteração. Para mim, primeiro vem a gastronomia Angolana, depois é que surge a Angolana, depois dela, aí sim, aparece a Angolana e depois, depois, depois (…) vêm todas as outras.

O que é que Angola a si diz, à parte das prosas gastronómicas que trocam? E Benguela?

comida1Angola é “fixe”, e explico- -me melhor, ao andar a pé, um hábito, cruzo-me com crianças de rua, com mães zungueiras que não sabem se os filhos terão jantar naquela noite, com trabalhadores que têm empregos precários e extremamente mal remunerados, e pergunto- -lhes como estão? Respondem-me sempre: “estou fixe meu cota!” e isso revela-me gente forte, sobreviventes.

Aqui sinto-me acolhido, sei que pertenço neste lugar e que este lugar me pertence, tenho uma vida tranquila, mas reconheço que precisamos de mais, melhores escolas e hospitais, serviços funcionais e, com todas essas falhas, se me faltar óleo ou sal em casa, bato à porta do vizinho e, por pouco que ele tenha, partilhará comigo, sabendo que poderá pedir-me o mesmo sempre que precisar.

Os nossos hábitos e costumes enriquecem-me. Eu gosto de comer com as mãos, é dos muitos aspectos que me fazem sentir ligado à terra. Benguela… O meu encanto por esta província, se fosse retratado num romance, teria como título “Amor à primeira vista”. Há 7 anos, pouquíssimo tempo após ter regressado de Portugal, vim passar um final de semana aqui. E fiquei. Aceitei o primeiro emprego que surgiu: Supervisor de Loja, disponibilizaram- me um anexo, que aos poucos se transformou no meu cemitério de bolos (Risos) onde, por entre encomendas perfeitas, vendidas na loja, havia também os que corriam mal (Risos).

Se a cozinha é o seu habitat natural e itinerante, onde é a sua casa? Porquê?

Eu sou um cidadão do mundo. Em qualquer parte para onde vá, basta que tenha uma cozinha recheada com ingredientes Angolanos, sentir-me-ei em casa.

Uma voz… Da minha mãe.

Um olhar…do meu pai

Uma lágrima… Da minha mãe.

Um sorriso… O da minha filha.

Um amor…A minha filha. A Ágata é o amor da minha vida!!

Qual a maior perda que poderia sofrer? E a que já tenha suportado?

A que já sofri foi a minha mãe. (Semblante triste) A mais esmagadora seria perder um dos meus filhos.

Viver sem cozinhar seria impossível. Sobreviver, talvez. Aplica-se a si? Porquê?

Esse sou eu. Porque cozinhar é-me tão vital quanto o ar que respiro. Não dramatizarei a afirmar que morreria se tivesse de parar de fazer o que amo, mas seria demasiado infeliz, um mero sobrevivente.

Consegue viver mais do que 24h sem confeccionar uma receita? Recorda- -se do período máximo em que sobreviveu sem aplicar gastrologia?

miguel1Não, não consigo. Lembro- me perfeitamente da única vez em que decidi submeter-me a esse martírio, ficar sem cozinhar durante um mês! Aguentei míseras 12 horas (Risadas), depois sucumbi. As panelas e frigideiras esperavam-me e eu morria de saudades delas. Mesmo que não esteja a trabalhar, em casa cozinho diariamente, nem que seja cortar e adicionar ingredientes a uma pizza encomendada, confeccionar um molho para intensificar o sabor de um prato do dia anterior, necessito desse contacto dia após dia.

Quais os alicerces da sua personalidade?

Sou muito simples, na Europa, quando saio para jantar com Chefs amigos, por norma vamos a restaurantes requintados mas, à saída, se passarmos por uma roulotte, peço sempre para pararmos e como um hamburger. As pessoas dizem que sou simpático, teimoso, chato e sonhador, e eu concordo com elas.

O romance entre um Chef e as suas facas… É para a vida toda?

Interessante… Não tenho essa estima pelas facas, mas é comum no mundo dos Chefs tamanha relação de proximidade. Tenho maior apreço pelas minhas jalecas, preservo as mais antigas e desgastadas.

Tem ídolos que reinem na gastronomia? Quem são?

Não, mas há aqueles que muito admiro. O tio João, Óscar Ribas, Jamie Oliver, Gordon Ramsay e Víctor Sobral.

Há quem diga que o amor é o ingrediente secreto de todos os pratos deliciosos. Qual é o seu segredo?

O amor. E já tive provas pois quando tenho problemas na minha relação ou outros emocionais, os pratos correm mal, não consigo atingir o meu patamar de qualidade.

A arte culinária requer inovação e superação permanentes. Está certo de que irá reinventar-se eternamente?

SIM! É o requisito elementar de qualquer artista.

O que lhe revela a pressão do limite de tempo?

Condição essencial, pois sem pressão não trabalho.

Aprecia os duelos gastronómicos? Compete?

Alguns. Competi uma vez aqui em Benguela, ganhei, mas não pretendo repetir. Foi no segundo ano da “Feira de Gastronomia”, o desafio era confeccionar um prato com cerveja cuca como ingrediente base. Fiz uma massa com frango e cerveja, simples, ao contrário da maioria dos pratos na competição que eram bastante elaborados mas, pelos vistos, consegui enriquecê-lo com o sabor que me levou à vitória.

Que história remete para o funge em fatias?

É engraçada… Foi funge de milho em forma de pastéis de bacalhau, panados com farinha musseque, servido com moamba de marisco. A parte gira é que o prato foi apresentado no primeiro festival de gastronomia de Benguela, e a pessoa que o confeccionou pediu-me ideias para o prato que iria apresentar no concurso (algo que muita gente faz), eu pensei e disse-lhe que se apostas-se nesse prato, que inventei no momento, ganharia. Expliquei-lhe o modo de preparação e estava certo de que seria fantástico, tanto em termos de apresentação como de sabor, mesmo sem nunca o ter ensaiado. Dito e feito, o prato venceu a competição.

Um Chef Pescador… Gosto de crer que sim. O meu interesse começou no Mussulo, fui responsável pela cozinha de um restaurante durante um ano e alguns meses, onde tive o privilégio de confeccionar peixe, marisco e moluscos fresquíssimos, acabadinhos de sair do mar, diariamente. O curioso em mim quis participar no processo desde a fonte, portanto, aprendi a pescar, comprei um pequeno barco e essa actividade passou a ser parte da minha rotina. A pesca era mais agradável no período da meia-noite às 5h da manhã. Uma vez, fui apanhado por uma tempestade em alto-mar, uma grande aventura! A força das ondas e do vento virou-me o barco, perdi tudo o que havia levado, como bom nadador, não corri risco de vida e consegui virar o barco… Pela manhã, consegui reaver alguns dos meus pertences, pois surgiram na beira da praia.

Chef Kitaba, porquê?

O apelido data dessa época, na ilha do Mussulo. Foi um período em que usei kitaba em quase tudo o que cozinhava então, os clientes, quando iam ao restaurante perguntavam qual era o prato do dia ou a sobremesa, e acrescentavam (gozando) “…é servido com kitaba, certo!?” (Risos) e assim, passaram a chamar-me Chef Kitaba!

“Practice makes perfect!” Quando ensaia e cria pratos, quem os prova e aprova?

Dou a provar à família, amigos e clientes, mas quem os aprova sou eu. Porque apenas apresento um prato para degustação se, de acordo com a minha exigência e rigor, tiver qualidade superior. E aprovo a maioria deles sem sequer os provar, pois não gosto de comer o que confecciono, confio na minha mente, experiência e olfacto para formular os sabores e saber quais os que funcionam ou não. As opiniões positivas que recebo dos espectadores apenas reforçam a minha convicção inicial.

Que destino dá às sobras e aos pratos quando não há “cobaias” sortudas para os degustar?

Procuro por pessoas que me são próximas para oferecer ou congelo e no dia seguinte faço uma “roupa velha”. Nunca deito fora.

Como foi que a Expo Milão 2015 entrou para os records da sua carreira?

Um valioso contributo para que isso se tornasse real foi a minha a ida a Itália, em 2014, num grupo onde integravam 10 jovens, a convite do Governador de Benguela, Eng. Isaac dos Anjos, para um intercâmbio de conhecimentos e experiência no ramo de restauração, durante 6 meses. Aprendi imenso sobre a cozinha Italiana e sobre a língua. Juntou-se o facto de ter sido condecorado pelo Ministério da Hotelaria e Turismo, que me distinguiu como um jovem promissor no ramo da gastronomia nacional e por ser membro da Academia de Gastronomia Angolana, recebi o convite para participar na Expo, que partiu do Rui Sá, do tio João e do Nataniel Africano. De seguida tive uma reunião com a Comissária Albina Assis que ficou fascinada com as minhas ideias e começámos a trabalhar no projecto.

Malas aviadas e 2 meses antes do início, parti rumo a Milão. Essa antecedência serviu para pesquisa e definir com exactidão os aspectos interligados ao restaurante de Angola no nosso pavilhão. Chegou o dia da inauguração, até então, não fazia ideia daquilo em que me estava a meter, achava que iria servir por volta de 50 pratos por dia. A minha sala tinha 60 lugares sentados, tive de duplicar o número de mesas e cadeiras e as pessoas faziam fila para comer no restaurante “Kitaba”, chegando a aguardar até 1h30 pela sua vez. Mesmo no dia de maior azáfama, reservava alguns minutos para ir servir os pratos às mesas, conhecer os clientes, trocar impressões com eles e obter os feedbacks. Essa é a minha identidade, gosto de me envolver. No pavilhão de Angola havia 2 restaurantes, o da Chef Elsa Viana no terraço que servia comida de fusão, Gourmet, e o “Kitaba” no rés-do-chão, onde servi pratos tradicionais sofisticados.

Foram meses muito intensos em que me senti verdadeiramente orgulhoso por comprovar que as pessoas tinham o restaurante “Kitaba” por referência e preferência. Era lotação esgotada diariamente, só parávamos de cozinhar quando o “stock” de ingredientes esgotasse. No início, com a minha equipa composta por 4 elementos, eu permanente, um Chef Italiano e dois auxiliares de cozinha rotativos, funcionais em dois turnos, servíamos cerca de 200 pratos por dia. Esse número progrediu até atingirmos o nosso record que foram 1700 pratos diários, todos com um empratamento impecável.

Houve um dia que se afigurava negro, mas demos-lhe a volta. O fogão avariou- se e tivemos de cozinhar numa chapa de grelhar, (Risadas) mas sem usar toda a sua superfície, pois havia grelhados para se fazer, e recorremos também ao forno, um dia interminável, transformamos a cozinha numa indústria de loucos! Mas que chegou ao fim sem que se mudasse o menu para um que se adequasse às restritas condições, sem pratos queimados ou mal confeccionados, e sem um atraso acima do normal, portanto, foi uma vitória.

É nessas ocasiões que se percebe que nós não somos normais, temos de ser doidos varridos para aguentar isso. (Risadas) Fiquei feliz por ter tido a honra de cozinhar especialmente para o Príncipe dos Emirados Árabes Unidos, a quem, numa sala privada, fui servir o jantar, “Kibeba de Choco”, “Moamba de Galinha”, “Gelado de Múcua”, bem como os sumos naturais de múcua e tambarino, feitos por mim. Outro feito que me marcou foi quando uma das mais renomadas revistas do mundo, a “Vanity Fair” entrevistou-me, e publicou um artigo sobre mim, que foi originado pelo facto de o Jornalista, Italiano, ter ido almoçar ao “Kitaba” e, para sobremesa, provou o gelado de múcua.

Ficou maravilhado. Pediu que me chamassem, e questionou- me se era um gelado comprado. Quando disse que tinha sido acabadinho de fazer, por mim, não quis crer. Fez-me imensas perguntas, e expliquei-lhe que é um gelado típico nosso, mas que a receita foi reinventada por mim. Ofereci-lhe múcua para que os seus filhos provassem e dei-lhe os passos para confeccionar. Tudo isso sem sequer saber que órgão de comunicação ele representava. (Risos) Trocamos contactos e hoje somos amigos. Algum tempo depois, já aqui em Angola, vi o artigo na internet e apercebi-me da grandeza da revista.

Está agora a colher os frutos resultantes das sementes que lançou em Milão, que são?

Surgiu a oportunidade de abrir o restaurante “Kitaba” em Roma, do qual serei sócio e Chef, com cozinha tradicional Angolana e inauguração prevista para final de Fevereiro ou primeira semana de Março deste ano. Está localizado numa zona elegante, no centro histórico. Tem perto de 100 lugares sentados, com uma decoração intrinsecamente Africana. Estará aberto diariamente, e será um mostruário da nossa cultura, pois para além da gastronomia faço questão de ter por lá exposições de arte, pintura, escultura e música ao vivo, tudo feito por gente que é nossa.

Quantos pratos já criou?

Apesar de nunca os ter contado, mais de 30, de certeza.

E qual deles o mais extravagante?

Prefiro eleger 3. Para entrada o “Pastel de Bagre”, prato principal, “Funge Panado em Farinha Musseque com Benguelu” e sobremesa, criada e servida na Expo, teve o nome dado pela Arquitecta Paula de Nascimento, a “Tentação do Imbondeiro”.

A afirmação da comida tradicional Angolana em Itália será um passaporte diplomático para o resto do planeta?

A cultura Italiana torna-os extremamente conservadores no que toca à gastronomia, enaltecem e preservam as suas receitas mais antigas, milenares se necessário, e ainda hoje fazem parte dos menus dos restaurantes e das cozinhas familiares. Por isso, estou certo de que, vencendo em Itália, vencerei no globo inteiro.

A gastrologia é uma ciência antagónica, pois tem como premissa essencial a espontaneidade. Conhece as fundamentais diferenças entre o Chef Kitaba e o Luís Miguel?

Quem se faz mais presente na sua história, o protagonista? Sim, conheço. O Luís Miguel era caracterizado por ser um jovem que, como tal, embora gostasse de desafios, se com eles viesse a mais pequena confusão, atrito ou divergência, afastava-se e desistia. Impulsivo, abstinha-se de tudo que causasse stress. O Chef Kitaba é ponderado, tranquilo, ouve opiniões e tem-nas em conta se as considerar correctas e adequadas, perante uma inquietação, tenta aprofundar a questão e encontrar a solução. Logo, o Chef Kitaba está mais presente em mim..  A VIDA endereça o seu profundo agradecimento à equipa da cozinha “Mil Cidades” pela amabilidade, prontidão e acolhimento, em especial à Chef Patrícia, à Nini e ao Homero Videira, que de tudo fizeram para que o Chef Kitaba se sentisse em casa, garantindo qualidade e profissionalismo na concretização da produção da entrevista, sem esquecer de realçar a disponibilidade e anuência da direcção do hotel.

Receitas do chef  Kitaba

esmagado de  kibeba com gambas grelhadas”

Ingredientes:

300g de choco; 300g de mandioca; 150g de batata rena; 5 Quiabos; 1 Lata de polpa de dendém; 5 Gambas; Azeite qb.; Polpa de tomate qb. Alho e cebola qb.

Modo de preparação:

Comece por cortar o choco e a mandioca em pedacinhos. Refogue num tacho o choco com alho e cebola em azeite, acrescente polpa de tomate a gosto, 3 colheres de sopa de polpa de dendém e vá mexendo. Após breves minutos, adicione a mandioca ao refogado, sal qb., um pouco de água e deixe cozer em lume brando, até que fiquei tudo totalmente cozido, empapado. Retire do lume e calque a mistura com a ajuda de uma varinha mágica, mas sem passar tudo, deixe alguns bocaditos de choco e mandioca por esmagar. Tempere as gambas e os tentáculos do choco, com limão, sal (e se quiser, chá de caxinde), alho, azeite e ponhaos a grelhar. Para o molho, frite duas ou três cabeças de gambas, que depois terá de pisar com azeite, cerveja, alho e limão. Coza metade dos quiabos e grelhe os que sobrarem. Corte-os cozidos às rodelas e decore a gosto. A sugestão de empratamento está demonstrada acima. Por fim, mergulhe os três grelhados no molho antes de os colocar no prato e verta um pouco deste sobre os demais componentes da receita. Bom Apetite!

“Pudim de múcua”

Ingredientes:

250ml de leite gordo; 250ml de leite condensado; 1kg de múcua; 4 Ovos; 300g de açúcar.

Modo de preparação:

Inicie o processo com a cozedura da múcua em pouca água, até obter uma papa com a consistência de um iogurte de copo. Numa taça adicione o conteúdo da lata de leite condensado, a lata servirá de medida para o leite gordo e para a polpa de múcua. Acrescente os 4 ovos e bata tudo muito bem até que obtenha uma mistura homogénea. Com o açúcar, numa frigideira ao lume, deixe-o derreter até caramelizar e junte uma pitada de água, unte a forma e deixe o caramelo arrefecer. Verta o preparado para o pudim na forma untada e ponha a cozer em banho-maria no forno a 160º por 30-35mins. Após esse período retire o pudim do forno e deixe-o arrefecer totalmente. Sirva- o num prato e faça uso da sua criatividade para o decorar. Use flores comestíveis, múcua, caramelo… Só não se esqueça de se deixar deliciar!

Bastidores:

Decisão certeira do acaso ou mera coincidência, a VIDA elegeu a cozinha do Aparthotel Mil Cidades para o palco onde dois charmosos pratos foram confeccionados pelo Chef Kitaba, que no início da conversa, confessou que foi o Chef fundador da casa, em 2009. Pouco passava das 8h da manhã de Quarta-feira, quando Luís Miguel entrou para a cozinha que estreou e viu-a completamente transformada. Instantaneamente, acordou o Chef que habita em si. Conheceu a Chef Patrícia, que se mostrou disponível para auxiliá-lo. Com destreza e eficácia começou a manusear os ingredientes que foram reservados para a sua master class. Nas entrelinhas conversou, riu e fez rir, cozinhou e empratou, para que, no final, todos nos pudéssemos deleitar a degustar.



Zuleide de Carvalho / Jornalista

Bruno Caratão / Fotografo

O Pais / Fonte

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